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Miroiços

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Bairro de Miroiços | Tires

“Quando, em Julho de 1999, a equipa da Associação Cultural de Cascais, a pedido da empresa A. Santo Empreendimentos Industriais e Turísticos, S.A., iniciou as sondagens arqueológicas em Miroiços, ali à saída de Manique para Tires, na fronteira da freguesia de S. Domingos de Rana com a de Alcabideche, estava muito longe de saber o que lhe estava reservado.

Para o sítio estava prevista a possibilidade de se fazer uma urbanização, no âmbito do Plano Especial de Realojamento (PER), na sequência, aliás, do protocolo há tempos firmado entre aquela empresa imobiliária e a Câmara Municipal de Cascais. O local escolhido, junto do actual Bairro de Miroiços, era, de facto, espantoso: uma panorâmica excelente sobre o lindo e (ainda) verdejante vale da ribeira de Caparide; o Tejo e o Atlântico ao fundo; para norte, o dorso da serra…

Aliás, não admirava que os Romanos ali se houvessem instalado. Na verdade, mais a sul, tinham identificado os arqueólogos uma villa romana que continuamos a supor ser uma das mais interessantes do concelho, apesar de ainda aí não terem sido feitos quaisquer trabalhos. De qualquer modo, o que se via à superfície era já suficientemente elucidativo para que o local fosse preventivamente classificado como imóvel de interesse público.

Situando-se a projectada urbanização na franja da área de protecção desse imóvel classificado, tornava-se necessário, face à legislação em vigor, que aí se procedesse a sondagens, no sentido de se verificar a existência ou não de vestígios com algum interesse histórico-arqueológico.

Durante três semanas, a equipa nada encontrou de relevante. E começaram as escavações em Freiria a 26 de Julho. Para descargo de consciência, porém, quisemos que, devidamente acompanhada por nós, uma retro-escavadora rasgasse um terreno mais a poente, que embora não apresentasse quaisquer vestígios superficiais, poderia ocultar alguma coisa.

Longas valas, num sentido e noutro, de modo a se toparem quaisquer estruturas e/ou objectos de interesse arqueológico. E foi a surpresa: alguns fragmentos de vasos cerâmicos perfeitamente datáveis da época romana e de muito boa qualidade, uma lixeira (que se revela sempre do maior interesse para os arqueólogos, porque para aí se atirava tudo o que não prestava e hoje é muito útil) e duas sepulturas de inumação. Ou seja, acharam-se ossos humanos.

Urgia, portanto, prosseguir nesse local os trabalhos, a fim de sabermos que tipo de cemitério ali existira, de que época, que importância cultural…

Tivemos, neste aspecto, a maior colaboração por parte de Américo Santo, que prontamente se disponibilizou a pagar as despesas que essa inesperada intervenção acarretaria.

E, após os trabalhos em Freiria, a 9 de Agosto, lá estava de novo parte da equipa.

De que se descobriu falam eloquentemente as imagens que apresentamos.

Perguntar-se-á: porque é que os arqueólogos não fizeram publicidade do achado nos órgãos de Comunicação Social, designadamente porque isso mostrava, inclusive, como o entendimento entre uma empresa imobiliária, os serviços camarários, o Instituto Português de Arqueologia e os arqueólogos que estão a trabalhar na zona resultava em pleno e era um exemplo a seguir noutras zonas do País.

O primeiro justificativo prende-se com as características do sítio: a notícia de que estavam a aparecer tantos esqueletos faria com que se gerasse para o local uma corrente de visitantes que, em vez de ajudar, poderia pôr em risco a integridade do que se estava a encontrar.

Por outro lado, os vizinhos, que cedo se aperceberam do que ali se passava, eram visita habitual e, assim, a população local, mais directamente ligada ao caso, esteve sempre devidamente informada e, como se tratava de algo que lhe interessava salvaguardar, não havia o perigo de quaisquer actos de vandalismo.

Outra pergunta inevitável: e agora?

Os arqueólogos escavaram uma extensão considerada mais do que suficiente para tirarem conclusões e apresentarem propostas ao urbanizador. Assim, estamos perante um cemitério paleocristão, ou seja, dos começos da Idade Média, talvez séculos VI ao IX, podendo mesmo ir mais além.

Cemitérios deste tipo há vários pelo país, de modo que não valerá a pena pugnar pela sua completa preservação, que, do ponto de vista patrimonial, seria aliás, contraproducente. Desta sorte, o urbanizador comprometeu-se a deixar livre – para zona de lazer – a área que nos pareceu mais interessante, de forma que, por exemplo, o forno de cerâmica – ora coberto – será devidamente consolidado e disporá de painéis explicativos do seu funcionamento. Perto dele, há três ou quatro sepulturas que, pelas suas dimensões, estado de conservação e características, também se deixarão a descoberto, voltando-se a depositar nelas alguns dos esqueletos, para que os visitantes se possam aperceber de como eram os rituais funerários antigos.

Podemos considerar, de facto, que, mais uma vez, esta intervenção mostra como um diálogo franco entre as diversas entidades em presença – cada qual com os seus interesses (económicos, patrimoniais, históricos, culturais…) – é susceptível de resultar em pleno.

Da nossa parte, estamos certos de que resultou. E congratulamo-nos.

A equipa responsável

Sob a supervisão de Guilherme Cardoso e de José d’Encarnação, os trabalhos foram dirigidos pela Dr. Lurdes Nieuwendam, com amplo apoio do Dr. Eurico Sepúlveda. A Doutora Eugénia Cunha, com a colaboração da Dra. Carina Pinto Marques, ambas do instituto de Antropologia de Coimbra, superintendeu à exumação dos esqueletos; à antropóloga Nathalie Antunes-Ferreira coube a tarefa de executar no terreno até final essa tarefa especializada e de elaborar o correspondente relatório. Severino Rodrigues, do Gabinete de Arqueologia da Câmara Municipal de Cascais esteve também connosco algum tempo, para tarefas especializadas.

Um brinquedo

Há sempre surpresas numa escavação. Nesta, entre outras, tivemos a do achamento de dois pesos de tear em miniatura, feitos de barro. Serviram, sem dúvida, para as brincadeiras das meninas romanas que ali viveram há dois mil anos atrás.

O forno

Um dos achados de maior interesse histórico quer pelo seu estado de conservação (como a respectiva fotografia documenta), quer pelas suas invulgares características.

Era circular, com dois metros de diâmetro, e os buracos que se vêem à volta da parede exterior de barro serviam para atanchar os troncos que amparavam a meda formada pelas camadas entremeadas de lenha e de recipientes de barro a cozer.

As doenças

O estudo destes esqueletos – a ser feito no Instituto de Antropologia de Coimbra – tem como finalidade não só saber a estatura média das gentes que ali foram sepultadas, a sua idade e sexo, mas também diagnosticar enfermidades.

E se, amiúde, os dentes, por exemplo, não revelam a existência de cárie, o mesmo não acontece com as doenças de coluna: vários dos indivíduos apresentam acentuada escoliose (a coluna vertebral torta) e há mesmo um exemplar em que (caso raro!) as vértebras se encontram soldadas!”

ENCARNAÇÃO, José d’; CARDOSO, Guilherme – “Miroiços (Manique)”, “Notícias da Freguesia” n.º 17 de Janeiro e Fevereiro 2000, S. Domingos de Rana, p.8-9

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